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domingo, 2 de março de 2014

Crimeia: A menina dos olhos do Império Russo.


Na última vez que foi visto, o presidente deposto da Ucrânia Viktor Yanukovich estava na península da Crimeia. Acusado de ordenar um massacre de civis na repressão dos protestos que levaram à sua queda, Yanukovich foi buscar abrigo na única região do país que não aderiu em nenhum momento à mobilização contra seu governo. Enquanto ucranianos comemoram e planejam uma Ucrânia pró-Europa, na Crimeia a população continua olhando para o leste, e vê uma oportunidade para se juntar a Moscou.
A Crimeia, uma península que fica no Mar Negro, é a região mais distante da capital Kiev. Essa distância não é apenas física, mas também étnica e cultural. Atualmente cerca de 60% da população da península se identifica como etnicamente russo e fala russo em vez de ucraniano. A península tem uma administração autônoma, com uma Constituição diferente da ucraniana. Além disso, a maior cidade crimeia, Sevastopol, abriga uma base naval russa com um efetivo de 25 mil homens.
O motivo para essa aproximação da Crimeia com a Rússia é histórico. A região foi anexada ao território russo no século XVIII, e foi efetivamente controlada por Moscou até a década de 1950. Na época, tanto a Rússia quanto a Ucrânia eram repúblicas socialistas da União Soviética. O líder soviético Nikita Kruschev decidiu, em 1954, passar o controle da península para Kiev. Quando a União Soviética entrou em colapso e a Ucrânia conquistou a independência, na década de 1990, a região continuou como ucraniana, apesar de ter um status mais autônomo e abrigar a base russa.
Segundo o jornal Washington Post, parte da comunidade russa da Crimeia vê a crise ucraniana como uma oportunidade para se integrar à Rússia. Há um forte sentimento de se separar da Ucrânia, que se manifesta inclusive no Parlamento - há propostas para emendar a legislação, por exemplo, para definir Moscou como protetor da autonomia crimeia.
Esse tipo de sentimento pró-Rússia também foi visto nas ruas, durante a crise política. As poucas tentativas de se organizar protestos em Sevastopol similares aos de Kiev não foram bem recebidas. Os manifestantes foram hostilizados, acusados de "fascistas" e até agredidos fisicamente antes de a polícia intervir. Segundo a revista Time, uma organização da sociedade civil na cidade chegou até mesmo a escrever uma carta ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, para pedir que Moscou enviasse tropas para "evitar o genocídio" na Crimeia.
A ação pode parecer extrema, mas tem precedente. Em 2008, a Rússia enviou tropas para a Ossetia do Sul, uma região que queria a independência da Georgia e que tem maioria étnica de russos, sob o argumento de prevenir um genocídio. A guerra entre Rússia e Georgia durou cerca de uma semana, com a vitória dos russos. Ainda é cedo para dizer se o mesmo pode acontecer na Crimeia. Mas, a julgar pelos sinais, a população local parece favorável a uma intervenção: em um ato simbólico, a bandeira russa foi hasteada nesta segunda-feira (24) em frente ao prédio da prefeitura de Sevastopol.
Homens armados que se auto-proclamam membros da polícia de choque ucraniana desmantelada Berkut fazem barreira usando a bandeira da Rússia em estrada que liga a Crimeia à cidade ucraniana de Armyansk, em 28 de fevereiro de 2014
História turbulenta

A península no Mar Negro, que tem território equivalente à metade da Suíça e clima comparável ao da Costa Azul, é dona de um passado turbulento. Os povos nômades citas, gregos, tártaros e turcos dominaram a região da Crimeia durante séculos, até a chegada dos russos.

"A Crimeia sempre foi a menina dos olhos do Império Russo", explica Wilfried Jilge, especialista em Leste Europeu da Universidade de Leipzig, na Alemanha. Segundo ele, o sonho dos czares russos era ter acesso ao Mar Negro – o que foi concretizado por Catarina, a Grande. Em 1783, a Crimeia foi anexada ao Império Russo.

Apenas em 1954 a península foi incorporada administrativamente à Ucrânia, então parte da antiga União Soviética, por iniciativa do então chefe do Partido Comunista, Nikita Khrushchev.
Após a queda da URSS, a Crimeia passou integrar a independente Ucrânia. A situação gerou forte tensão, pois cerca de dois terços da população da península tem origem russa. Em 1992, o Parlamento russo considerou inválida a decisão de Khrushchev, e a Crimeia declarou sua independência do governo ucraniano.

Coube a Kiev acalmar os ânimos na região. Em 1994, porém, os conflitos voltaram a se acirrar. Yuri Mechkov foi eleito presidente da Crimeia e voltou a alinhar a região com a Rússia. Mas desta vez, a Ucrânia conseguiu manter a Crimeia sob sua tutela. Mechkov foi retirado do poder e fugiu para território russo.
A disputa entre Rússia e Ucrânia pela divisão das frotas do Mar Negro, porém, durou até 1997, quando os dois lados assinaram um acordo. Ficou acertado que Moscou retiraria suas tropas da Crimeia até 2017. Sob a presidência de Victor Yanukovytch, porém, o acerto foi esticado para 2042.

Maioria pró-Rússia

Não existem pesquisas de opinião recentes que revelem como a população da Crimeia enxerga seu futuro. Mas há dados que mostram essa percepção indiretamente. Segundo um levantamento de junho do ano passado, apenas 31% dos moradores da Crimeia apoiam a Ucrânia como um Estado independente. Outros 36% são contrários – em sua maioria russos.
Também há ucranianos e tártaros vivendo na Crimeia que rejeitam qualquer separação. Em 1944, Stalin mandou deportar povos tártaros da Crimeia para a Ásia Central por eles supostamente terem colaborado com o regime nazista durante a Segunda Guerra.

Há pelo menos 20 anos os tártaros começaram o movimento de retorno à Crimeia. Atualmente a comunidade de 300 mil pessoas já responde por 14% da população. "Os tártaros da Crimeia são tradicionalmente pró-Ucrânia e enxergam seu futuro em um Estado ucraniano", pontua Yilge.

Acordos de gás e petróleo

Mas não apenas questões políticas estão em jogo na Crimeia. Caso essa região realmente se separe da Ucrânia, será um grande golpe para a economia do país. A principal fonte de renda da península até agora é o turismo – mas isso deve mudar em breve, pois há expectativas de exploração de grandes reservas de gás na região.

O governo da Ucrânia planejava assinar até 2013 um acordo com um consórcio internacional, liderado pela gigante americana ExxonMobil, para produção de gás e petróleo no Mar Negro. Mas a assinatura do contrato acabou sendo postergada.

A partir de 2017, cerca de 10 bilhões de metros cúbicos de gás devem ser produzidos, segundo expectativas do Ministério ucraniano de Energia. Isso iria reduzir substancialmente a dependência dos ucranianos do gás que vem da Rússia.

Fontes: Revista Época e Revista Carta Capital.


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