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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O que está por trás das manifestações na Ucrânia?


Kiev, Ucrânia, dia 22 de Janeiro de 2014. Confrontos entre polícia e manifestantes deixam ao menos quatro mortos. Fotos mostram tanto manifestantes quanto policiais usando armamento de munição real. Mas se o dia produziu imagens chocantes da verdadeira guerra nas ruas de Kiev, o início do descontentamento popular é bem anterior. Os atuais protestos começaram em cerca de 21 de Novembro de 2013, e recebeu o nome de Euromaidan, literalmente “Praça Europeia” em ucraniano, pois o principal local dos protestos é a Praça da Independência na capital Kiev. Porque até oitocentos mil ucranianos estão na Praça, alguns ocupando tem meses?
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Foto: Flickr/Ivan Bandura
Alguns dos motivos dos protestos são quase universais, e encontram similaridade nos protestos brasileiros, como violência policial e corrupção política. Mas uma característica essencial e única, presente até no nome do movimento, é a relação da Ucrânia com a União Europeia. A suspensão, pelo atual governo ucraniano de Viktor Yanukovych, do Acordo de Associação com a União Europeia e também de um acordo de livre comércio com a UE, em Novembro, gerou polêmica na opinião pública. O acordo é um modelo que estabelece parâmetros de cooperação entre a UE e um país não membro, e é visto muitas vezes como primeiro passo para futura associação daquele país com a UE.
Os motivos para a suspensão? Teoricamente, algumas exigências da UE em relação ao estado da democracia no país; um enfraquecimento da economia ucraniana, que, segundo os críticos do acordo, seria piorada pela assinatura; finalmente, uma não admitida pressão política e diplomática russa, que objetiva a entrada da Ucrânia na União Aduaneira da Bielorússia, Cazaquistão e Rússia, embrião de uma planejada União da Eurásia; a Ucrânia já é membro observador na organização, assim como diversos outros membros da Comunidade de Estados Independentes, que corresponde geopoliticamente às ex-Repúblicas soviéticas, excetuando os países bálticos e a Geórgia.
Uma das principais preocupações da política externa russa na última década é com a expansão “ocidental” para dentro do que ela considera sua esfera de influência: o leste europeu, o Cáucaso e a Ásia central. Esse o motivo da atual pressão política russa em um governo ucraniano tido como conservador e pró-Rússia. O mapa abaixo ilustra a situação econômica da região. Em azul claro, países em diferentes estágios de negociação para entrada na União Europeia; em azul escuro, a União Europeia; em vermelho claro, países da Comunidade dos Estados Independentes; em vermelho, a União Aduaneira da Bielorússia, Cazaquistão e Rússia e, no centro do cenário, a Ucrânia, em laranja.
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A importância da Ucrânia, para a Rússia, não é apenas econômica. É também geopolítica. O país é parte do trajeto de alguns dos principais gasodutos e oleodutos russos, que permitem a negociação da vasta reserva energética com a Europa ocidental; a própria Ucrânia é “refém” de importações de energia russa. Além disso, na Ucrânia está sediada a Frota Russa do Mar Negro, uma das mais importantes do país; após a dissolução da União Soviética, parte dos navios ficou com a Ucrânia, para sua própria marinha, em troca do arrendamento de bases em território ucraniano. No mapa abaixo, a importância da localização ucraniana fica evidente, entre a OTAN, azul escura, e a Rússia, em vermelho. Países em azul claro, como a Geórgia, estão em negociação para entrada na OTAN.

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A relação entre Rússia e Ucrânia após a dissolução da União Soviética foi, e ainda é, complicada. Os países tem contendas territoriais não resolvidas e parte da população ucraniana vê a influência russa no país como excessiva, imperialista e negativa. Exemplo disso foi após a Revolução Laranja, em 2004, quando as eleições ucranianas foram anuladas por fraudes e corrupção, supostamente incentivadas pela Rússia. Viktor Yushchenko foi declarado o vencedor. O derrotado? Viktor Yanukovych, atual Presidente, visto como conservador e Pró-Rússia. Exemplo desse descontentamento ucraniano com a Rússia foi dado na derrubada da estátua de Lênin, na Praça da Independência de Kiev, algumas semanas atrás.

Obviamente, essa retrospectiva dos interesses russos no país e da relação entre Ucrânia e Rússia está resumida, peço desculpas por isso. A Ucrânia, hoje, além de imensa importância geopolítica, representa uma economia emergente de mais de 300 bilhões de dólares, setores industriais estratégicos e uma forte produção agrícola. Não é sem motivos que a União Europeia a “corteja”, assim como a Rússia não pretende abrir mão de sua influência no país. Mas não são apenas números e política que explicam os protestos ucranianos. Eles são, na verdade, demonstração de algo muito mais social e cultural.
A Ucrânia existe, como país independente, desde 1991. Antes disso, o atual território da Ucrânia existiu como entidade independente apenas no século XII, quase mil anos atrás. Em 1783, a anexação do que restava da Ucrânia ao império russo foi completa. Desde a Alta Idade Média, existe uma cultura ucraniana, com seu idioma, seus costumes, diferentes tribos, como os cossacos de diversas regiões. Mas, hoje, no século XXI, o que significa ser ucraniano? Essa pergunta, ou melhor, a falta de uma resposta para essa pergunta, que explica os protestos em Kiev.
Apenas hoje está se formando uma juventude, universitária e esclarecida, que nasceu e cresceu em uma Ucrânia independente. Qualquer ucraniano com mais de vinte e três anos de idade, nasceu ainda na União Soviética. A nova geração busca o rompimento com esse passado e se vê como parte da Europa, um povo europeu. A geração intermediária, em torno de quarenta anos de idade, segundo as pesquisas, vê a Ucrânia como uma “força regional”, que deve buscar conciliar o Ocidente e o Oriente; cresceram em uma União Soviética em processo de abertura, com autonomia regional ucraniana, embora dentro do Estado comunista. Finalmente, há a antiga geração, que vê a Ucrânia não como europeia, mas como “russa”, um país com suas particularidades que o aproximam do Oriente, não necessariamente da Europa.
Foto tirada em 19 de Janeiro mostra, nos protestos, ao centro, um dos líderes da oposição ucraniana, o Campeão Mundial de Boxe Vitali Klitschko.
Foto tirada em 19 de Janeiro mostra, nos protestos, ao centro, um dos líderes da oposição ucraniana, o Campeão Mundial de Boxe Vitali Klitschko.
As centenas de milhares de pessoas que estão nas ruas de Kiev lutam pela melhoria de seu país. Protestam contra um governo que acreditam ser corrupto e conservador, e buscam o caminho que acreditam ser apropriado, tanto para a economia quanto para a cultura e sociedade do país: a aproximação com a Europa. Em contraste, antigos setores da sociedade ucraniana (Yanukovych, em sua juventude, foi do ainda Partido Comunista da Ucrânia soviética) mantém o país em suas antigas relações, supostamente freando a democratização do país ainda pubescente. Uma geração intermediária fica no meio-termo, buscando um papel ucraniano de “encruzilhada” entre Ocidente e Oriente, enquanto as ruas pegam fogo. Ainda não sabemos qual será o resultado, mas, mais do que afetar as relações externas ucranianas e a legitimidade de seu governo, o que virá das ruas é a resposta da pergunta: o que é ser ucraniano?

FONTES: Globo News; BBC; Xadrez Verbal.

Um comentário:

  1. É meu caro PT, será que a dissolução da URSS, no incício da década de 1990, foi apenas um compasso de espera para uma nova reconstituição do Império Russo?
    Vladimir Putin tem se dedicado com enorme esmero nessa tarefa.

    Poxa vida, como fazem falta as aulas de Geopolítica do prof. Gasparetto.

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